quarta-feira, 30 de julho de 2008

Reforma Ortográfica

Texto bem-humorado de Veríssimo acerca do Acordo Ortográfico.

Os amigos reuniram-se à mesa do bar. Chegaram todos com um ar de preocupação. Sabiam que, desta vez, havia algum assunto sério a ser tratado entre as rodadas de cerveja geladíssima. Havia algo de grave na voz do Trema quando receberam a convocação por telefone. Chegaram quase todos ao mesmo tempo. O Ponto, a Vírgula, a Crase, o Ditongo, os gêmeos Acento Agudo e Acento Circunflexo, o Til – que levou o sobrinho porque não tinha com quem deixá-lo –, o Travessão e a Cedilha. O Sufixo, como sempre, chegou depois de todo mundo. Antes de pedir a primeira cerveja, o Trema foi logo falando, a voz meio embargada. Meus amigos, chamei todos vocês aqui porque o assunto é grave. Não vou enrolar porque considero vocês são como de minha família. Eu estou>no fim. Meus dias estão contados.>>O Travessão interveio, rápido.>>– Peraí. Não dá para engolir a seco uma notícia dessas. Ô, Cafu, desce>umas cervas aí, urgente, por favor!>>Alguns fizeram cara de espanto. Pura encenação. Lêem jornais,>portanto, já sabiam. Outros, como o Ditongo e a Crase, realmente se>assustaram.>>– Como assim? Você tá brincando, Tre! – disse a Crase, já com os olhos>marejados.>>– É a pura verdade. Pura e triste verdade.>>Tomou um longo gole de cerveja e explicou.>>– É a reforma ortográfica. Será implantada em 2008. Portanto, no ano>que vem eu não estarei mais aqui.>>– Não é possível! – reagiu o Ditongo, como sempre desavisado.>>– É sim. Eu mesmo li meu anúncio fúnebre na Folha de S.Paulo.>>Tira um recorte amassado do bolso da calça. Quase chorando, lê para os>amigos:>>– Abre aspas: O fim do trema está decretado desde dezembro do ano>passado. Os dois pontos que ficam em cima da letra u sobrevivem no>corredor da morte à espera de seus algozes. Fecha aspas.>>Silêncio na mesa.>>– Como vêem, são meus últimos dias. Tantos anos de serviços prestados>à língua portuguesa não valeram nada. Simplesmente decretaram dia e>hora para minha morte.>>– Meu Deus. Que absurdo! – reage a Cedilha, lutando para segurar as>lágrimas.>>– Pois é. Inventaram que é preciso unificar a ortografia entre os oito>países que usam a língua portuguesa. Argumentam que isso vai aproximar>as culturas. E eu, amigos, serei oferecido em sacrifício.>>Há um misto de perplexidade, revolta e pena em volta da mesa.>– Algum burocrata da ortografia decidiu que eu sou inútil. Acham que>eu ungüento aguado.>>– Aguado pode ser. Ungüento, não. Unguento – protesta o Travessão, sob>o olhar de reprovação geral.>>– Desculpe, mas vocês sabem: eu perco o amigo, mas não perco a piada.>>O Trema procura ignorar. Conhece o amigo há décadas. Sabe que ele não>perde a velha mania. Continua a conversa lamuriante.>>– Ainda quiseram me consolar, dizendo que eu, companheiro de vocês em>tantas jornadas, sobreviverei em nomes próprios. Balela. Eu>sobreviveria na Alemanha, com seus Günter e Müller da vida, mas aqui,>no Brasil, meu destino está selado.>>Pedem mais cerveja.>>– Por isso eu chamei vocês. Fiz questão que fosse aqui no Bar Azul,>que a gente freqüenta desde o tempo da faculdade. Aqui comemoramos>momentos felizes e choramos momentos tristes. Logo, só vocês poderão>freqüentar aqui. Eu serei apenas lembrança. Aliás, nem vocês poderão>freqüentar. Terão de frequentar.>>Todos se abraçam. Alguém propõe um brinde, dizendo que a amizade entre>o grupo permanecerá para sempre, mesmo que um dia reste apenas um para>beber no bar. É nesse momento que notam a ausência do Hífen.>>– Alguém sabe dele? – pergunta o Trema.>>O Acento Agudo sabe.>>– Não vem. Está deprimido. A reforma ortográfica também mexeu com ele.>O Hífen não será mais usado quando o segundo elemento começa com s ou>r. Ele já sabe que nesse caso será substituído pela duplicação das>consoantes. Sacaram? No futuro só haverá antirreligioso, contrarregra,>antissemita. Ele também deixará de ser usado quando o prefixo termina>em vogal e o segundo elemento começa com uma vogal diferente, como>extraescolar, aeroespacial e autoestrada.>>– O Hífen nunca lidou muito bem com as perdas da vida – lembra o>Trema. Mas pelo menos ele vai continuar existindo.>>– Todos nós saímos perdendo com essa reforma – pondera um dos gêmeos.>>– Eu, Acento Circunflexo, por exemplo, vou ser defenestrado das>terceiras pessoas do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo>dos verbos 'crer', 'dar', 'ler', 'ver' e seus derivados. Quando vocês>lerem 'crêem', 'vêem' 'lêem' e 'dêem' sentirão minha ausência. Também>vão me tirar das palavras terminadas em hiato 'oo'. Quem tiver enjoo>no voo não terá minha companhia.>>Seu irmão gêmeo também choraminga.>>– Vocês sabem que tudo que afeta meu irmão afeta a mim também –>intervém o Acento Agudo. Eu perderei minha função nos ditongos abertos>'ei' e 'oi' de palavras paroxítonas. Não me querem mais em 'idéia',>'assembléia', 'jibóia' e 'assembléia', por exemplo. Também ficarei de>fora nas palavras paroxítonas, com 'i' e 'u' tônicos, quando>precedidos de ditongo. 'Feiúra' e 'baiúca' passarão a ser 'feiura' e>'baiuca'. Mas nesses casos tudo bem. Eu nunca gostei de 'feiúra' e>'baiúca'. Duro mesmo é saber que serei extirpado sem dó nas formas>verbais que têm o acento tônico na raiz, com 'u' tônico precedido de>'g' ou 'q' e seguido de 'e' ou 'i'. Modéstia à parte, sempre me>orgulhei de dar um ar aristocrático a algumas formas de verbo. Ouçam>bem: 'averigúe', 'apazigúe', argúem'. Sem mim, isso não terá a menor>graça.>>– Só sobreviveremos em nossa integralidade nos livros da Antigüidade>-, observa o Trema, melancólico. E pensar que até Antigüidade vai>virar antiguidade... Imagine as conseqüências dessa mudança. Quer>dizer, as consequências...>>A esta altura, já estão todos meio embriagados. O Ponto, sempre>otimista, lembra que pelo menos um membro da turma sairá ganhando com>a reforma.>>- O Alfabeto, gente. Vão incorporar ao Alfabeto as letras k, w e y.>>- É por isso que ele não veio – explica a Vírgula. Disse que ia na>Leroy Merlin porque agora vai ter de aumentar a casa.>>Alguém chama o garçom.>>- Cafu, mais cerveja. Nós vamos agüentar firme, aqui com o Trema.>Vamos abrir uma trincheira etílica em defesa do nosso velho e bom>amigo.>>Propõem outro brinde. E voltam a chamar o garçom, que já se distanciava.>>- Traz também uma porção de lingüiça calabresa. Sem cebola. Mas não>esquece do trema, por favor!

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